terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eu não conheci o António Sérgio

Não me lembro de ouvir o António Sérgio no Rotação, não me lembro do indicativo do programa, não faço ideia qual era o horário das emissões, mas tenho a certeza que foi aí que o ouvi pela primeira vez, em 1979. Também sei quem me aconselhou a ouvir o programa do "gajo que tem uma voz que parece que comeu cascalho", um puto com uma pequena, mas criteriosa colecção de discos, cuja casa eu frequentava diariamente. Lembro-me bem de jogar futebol no pátio desse meu amigo, com mais meia-dúzia de rapazes da mesma idade, enquanto um rádio manhoso, estrategicamente colocado em cima de um muro, debitava os sons do Rock em Stock do Luís Filipe de Barros para nós (e a certamente entusiasmada vizinhança) ouvirmos e cantarmos, enquanto destruíamos de forma categórica e metódica os vasos e as plantas que, estupidamente, não se desviavam dos nossos espectaculares remates. Mas à noite, a atitude era diferente. Era a hora do Rolls Rock - estávamos em 1980 e o António Sérgio tinha mudado da Renascença para a Comercial - e a brincadeira terminava. Era a hora de sacar das cassetes de qualidade altamente duvidosa (custavam 20$00 numa papelaria da Rua de Cedofeita), para gravar os programas retirando-lhes a voz, de modo a podermos criar as nossas próprias compilações e fazer um figurão junto dos dois ou três amigos que, fora do nosso círculo íntimo, tinham paciência para nos ouvir tecer grandes elogios "aquele 12" lançado pelos Neubauten numa editora da Patagónia e comercializado, em exclusivo, no Burkina Faso". O sucesso junto das miúdas estava garantido...

Obviamente que, nessa altura, para nós, putos imberbes e pouco esclarecidos, o Mestre ainda não era o Mestre. Rapidamente percebemos que amputar os programas da voz, daquela voz, não era uma atitude muito inteligente. Como ouvíamos os programas de caneta e bloco de notas em riste, prontinhos a anotar o nome das canções que íamos gravando, está visto que, ao mais pequeno deslize, o caos caía sobre as nossas cabeças. Assim, andamos vários meses convencidos que a canção Sorry For Laughing, um single dos Josef K, fazia parte do portfolio de John Cale.
Nessa altura, o Rolls Rock de António Sérgio tinha um parceiro no crime, as crónicas de Miguel Esteves Cardoso publicadas no Sete e n'O Jornal, que eram editados, respectivamente, à quarta e à sexta-feira. Se o papel de António Sérgio na divulgação da nova música dessa época é de uma importância única, o trabalho de Miguel Esteves Cardoso não pode ser ignorado, funcionando, muitas vezes, como um complemento fundamental, não sendo poucas as vezes que novos nomes surgiam em primeiro lugar nos textos do MEC e, um pouco mais tarde, eram apresentados no programa do António Sérgio. A informação cruzada entre os textos do MEC e os sons do António Sérgio ajudaram a formar o gosto a uma geração, numa época de acesso limitadíssimo aos discos e às publicações que eram lançadas lá fora, e reduzida às importações da Cobb Records e a escassas viagens de amigos ao estrangeiro.

Em 1982 nasceu o Som da Frente e, mais que um programa de rádio, o António Sérgio, de forma involuntária, ajudava a criar toda uma estética, a definir um gosto musical, tão vasto e impossível de ser definido, tal era a profusão de géneros que nele cabiam, limitados apenas pelas diversas correntes musicais que nos era dado a descobrir, diariamente, através da antena da Comercial.
Algo de único aconteceu. Enquanto o NME ou o Melody Maker falavam de New Wave, Cold Wave, Ska, Goth, ou mais tarde, Shoegazers ou Grunge, toda uma geração de ouvintes do António Sérgio auto-definia-se por gostar de uma coisa híbrida, de nome “Som da Frente”, criada por um homem que, não fazendo música, oferecia como ninguém, a música dos outros. E à sexta-feira e sábado, saíamos à rua, e encontrávamo-nos em clubes como o Griffon’s ou o Batô para ouvir o Som da Frente, que tanto definia um programa de rádio como a música que nele passava, os Psychedelic Furs ou Echo and The Bunnymen, que hoje são sons correntes em discotecas revivalistas da moda, mas à época eram sonoridades non-gratas na maior parte dos lugares de diversão nocturna.
Em 1987 comecei a trabalhar e os horários não me permitiam escutar, em directo, o programa do António Sérgio. Durante dois ou três anos, para resolver o problema, gravava programa atrás de programa e ouvia no leitor de cassetes do carro. Como o dinheiro não abundava, gravava uns por cima dos outros até as fitas ficarem num estado de tal forma degradado que não davam para mais. Obviamente que, assim sendo, quem viajava comigo e não partilhava os meus gostos musicais, acabava por sofrer autênticas torturas sonoras. O trauma foi tão grande que, numa dedicatória por altura do meu 44º aniversário, um amigo de longa data escreveu o seguinte num cartão de parabéns: “Entusiasta de programas de rádio como o Som da Frente, cujas bolorentas gravações ainda hoje guarda, começa desde tenra idade a coleccionar uma discografia musical inaudível interpretada por grupos com nomes impronunciáveis.”

Reencontrei o António Sérgio quando a inesquecível XFM iniciou as suas emissões para a cidade do Porto, onde vivo. Nunca o trânsito caótico da minha cidade me pareceu tão suportável. Foram os tempos do Grande Delta, da possibilidade de ouvir o António Sérgio em horário diurno, e tomar contacto com outros radialistas que, claramente, se identificavam com uma forma de fazer rádio e de divulgar alternativas, diferentes formas de fazer rádio influenciadas, cada uma à sua maneira, pelos projectos do Mestre ao longo dos anos 80 na Rádio Comercial. A XFM terminou e, durante mais de dez anos, deixei de ouvir os programas do António Sérgio. Ocasionalmente, num regresso mais tardio a casa, acabava por ouvir e matar saudades. Mas raramente acontecia.
A partir de 2008, os programas do António Sérgio voltaram a fazer parte do meu dia-a-dia, através da emissão via Web da Radar, para onde se tinha mudado em boa hora, e também através dos podcasts do Viriato 25 e do SOS Radar que continuo a guardar, agora em formato digital.

1 de Novembro de 2009, por volta das 13 e qualquer coisa.
“O António Sérgio não ERA aquele tipo da rádio de quem tu GOSTAVAS muito?” A pergunta sem sentido, feita por quem sabia bem a resposta, mas desconhecia a melhor forma de dar a notícia, deixou-me perturbado. Balbuciei qualquer coisa como “o Sérgio morreu?”, atravessei a casa, do escritório até à cozinha onde a televisão transmitia uma entrevista de ocasião com um colega do António Sérgio, cujo nome não recordo e que, estou certo, debitava algumas palavras de circunstância que não fui capaz de reter.

Para quem, como eu, não conheceu o António Sérgio, nunca o viu ou falou com ele, cujo único contacto existiu através do envio de postais com a votação para a Lista Rebelde, torna-se difícil explicar o sentimento de vazio que o seu desaparecimento deixa. No fundo, que diferença faz, para mim e muitos como eu, não voltar a ouvir os programas do António Sérgio se, graças à tecnologia, podemos matar saudades da sua voz, da sua presença nas ondas da rádio através das gravações feitas ao longo do tempo? Com a vantagem para aqueles que têm uma costela revivalista, de não ter de aturar aquelas novos sons que se estranham e que ele tinha a irritante mania de nos oferecer, noite após noite, independentemente da estação onde se encontrasse.

O problema, para mim e muitos outros, é que o António Sérgio não representa apenas aquele tipo, de voz cavernosa, que nos deu a música de que gostamos, que nos ajudou a traçar o nosso próprio caminho e a definir os nossos gostos na área do pop / rock, do blues, e também do cinema ou literatura através de referências constantes em inúmeras rubricas que, em parceria com a Ana Cristina, lutou contra o marasmo e traçou um percurso único na rádio portuguesa. Mais que tudo isso, o António Sérgio foi aquele que, poucos anos após a revolução de 74, num país ainda fortemente marcado pelo analfabetismo, ignorância e preconceito, declarava diariamente, no início dos seus programas: Som da Frente, O DIREITO À DIFERENÇA. Mais do que a música, mais do que o gosto pela constante divulgação e pela procura de novos sons e novas pistas, este é o legado que o António Sérgio deixou, ainda em vida, a muitos como eu, da minha geração e das que se seguiram. A melhor forma de o homenagear é continuar a respeitar este proclamado direito à diferença, mesmo que, por vezes, os nossos preconceitos e os nossos próprios demónios tornem a tarefa um pouco complicada. Para e por uma imensa minoria…

7 comentários:

  1. Mais um bom texto, para não variar. Pois eu conheci o António Sérgio em 1983. Era tímido, mas nada inacessível, como talvez a voz e a postura dele pudessem sugerir. Era de poucas falas, e quando queria estar sozinho na cabine estava mesmo sozinho. Como eu o entendo... Muito fechado... nunca quis ser vedeta, ao contrário de outros, que quiseram sê-lo e não conseguiram (como ele). Também não me lembro de todo o indicativo do Rotação, mas lembro-me que terminava com Over the Hills and Far Away dos Zeppelin. Comecei a trabalhar em 1978, e quantas vezes cheguei ao escritório com uma olheiras enormes... não conseguia ir para a cama antes das 3 da manhã, mas nunca faltei ao "serviço". E tinha em cima da secretária um rádio-leitor de cassettes, um artigo de 1ª necessidade para mim... Por vezes a chefe mandava-me baixar o som. Era o "som da frente"...

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  2. Muito obrigado pelo brilhante texto, através do qual consegui avivar memórias e momentos inesquecíveis passados ao som do mestre. Obrigado também pelo espaço único que criou e tem mantido aqui no espaço virtual ao longo de vários anos...
    Como diria o Sérgio. "que o som esteja convosco!"
    Um abraço
    Carlos Leitão

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  3. Um muito obrigado em nome de toda uma geração de ouvintes do António Sérgio, na qual eu me incluo, que sempre que me perguntavam que tipo de musica eu ouvia e gostava, a resposta era sempre a mesma, “Som da Frente”.
    Quem nunca tinha ouvido falar, ficava na ignorância, outros sabiam logo do que se tratava.
    Entrei para a Universidade do Minho, em Braga, no ano lectivo 1984/85 e lembro-me de passar as tardes em casa a ouvir e gravar cassetes do "Som da Frente" com o meu colega de quarto e de curso, nem que para isso fosse preciso faltar de vez em quando a umas aulas.
    As noites de 4ª feira eram sempre passadas no Mordillo, que igualmente só passava "Som da Frente".
    Mais tarde, já a trabalhar em Lisboa, continuei a ouvir o António Sérgio na XFM, saudosa rádio dedicada a uma imensa minoria.
    Bem-haja António Sérgio

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  4. Revejo-me em muitas passagens do seu texto.
    Embora muito novo também me lembro de o começar a ouvir na Renascença. Logo aí fiquei fascinado por aquela voz que nos dava a conhecer "propostas" que mostravam todo um mundo à nossa frente para descobrir, onde seria possível afirmar o direito à diferença.
    Nessa altura, recordo-me de uma visita de estudo à Renascença no Porto e de ter dito ao cicerone que ouvia o programa do AS noite dentro. Ao que o cicerone, após uma breve pausa para tentar perceber do que eu estava a falar, dispara: "Ah, esse programa de música quadrada". O início do Som da Frente coincidiu com a minha entrada na faculdade e aí tornei-me ouvinte fiel e penitente. Curiosamente nunca gostei do termo "Som da frente" para rotular aquela música. Além de música independente e alternativa, lembro que nessa altura havia quem a qualificasse como "Vanguarda". Mas eram mais os de fora quem aplicava os rótulos. Para nós, era "a música" e o AS era o verdadeiro sacerdote com quem nos reuníamos para praticar esse ritual de descoberta da nova música. Foi esse o legado que ele nos deixou. Também eu não conheci pessoalmente o AS. Contudo, tive o enorme prazer de trocar uns escassos emails com ele que me souberam a pouco, mas que são das gratas recordações da minha vida. Foi quando a Comercial tomou aquela atitude espúria de acabar com o programa dele.
    É verdade que ele não tinha nada a ver com aquela rádio, mas era o nosso local de encontro, sempre que o corpo permitia, pois ao outro dia era dia de trabalho. Através de mail quis apenas dar testemunho ao AS do que ele representou na minha vida. E a verdade que ele salvou as nossas almas, preencheu-as com este prazer da descoberta da nova música, que ainda hoje procuro praticar. E, surpresa das surpresas, o Mestre respondeu-me. Disse-me que tinha ficado com os pelos da nuca eriçados por eu ter dito, com verdade, tudo aquilo que ele significou para mim, o legado que ele nos deixou, património que não nos abandonará no horizonte das nossas vidas. O AS revelou aí a humildade dos homens grandes.
    E logo me deu um conselho de Mestre: Ricardo, todos os dias estão a nascer novas bandas que vale a pena conhecer. E sugeriu-me os Band Of Horses e os Clap Your Hands Say Yeah.
    Mais tarde recebi um email do António Sérgio a comunicar que iria começar emissões na Radar.
    Nem queria acreditar que o AS se tinha dado ao trabalho de me avisar. Partilhei com uma série de amigos com gostos em comum e desde então sou ouvinte assíduo da Radar, via internet pois não resido em Lisboa.
    Acompanhei o Viriato 25 com a mesma paixão dos meus 15 anos. Voltávamos a ter aquela voz, profunda e sobretudo apaixonada, de quem tinha com a música uma relação que só aqueles que percebem que a música é mais importante que a vida conseguem ter.
    O dia 1/11/2009 foi de enorme tristeza.
    3 meses antes tinha perdido a minha mãe. Ainda não sabia que iria perder o meu irmão 21 dias depois.
    2009 foi um ano terrível, que me deixou um buraco profundo que jamais conseguirei tapar por muito que viva.
    A partida do AS contribuiu para esse buraco negro.
    Foi reconfortante ter ido ao velório dele, pois encontrava-me em Lisboa e em curtas palavras deixar escrito no livro de condolências que mesmo que tivesse tido necessidade de me deslocar expressamente de Viseu, onde resido, para prestar essa homenagem ao AS tê-lo-ia feito por tudo aquilo que ele significou para uma geração que cresceu com ele e a quem ele iluminou tantas vezes o caminho.
    Reconfortou-me ter-lhe dito em vida tudo quanto ele significou para mim.
    Caso queira que eu partilhe, para publicação, os mails que o AS me dirigiu, terei todo o gosto.
    O meu endereço de email é: "brazetes@gmail.com".
    Também tenho todos os número do "Rock Week" que saiu em 1980 ao longo de 12 números onde a lista rebelde era publicada, que posso partilhar, se assim entender.
    Um abraço e parabéns pelo seu blog de que só tomei agora conhecimento com a emissão do documentário na RTP2.

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